quinta-feira, dezembro 10, 2009

Eu, O Imperador


Acontecia aos domingos mais ou menos por volta das nove da matina (o começo...quanto ao fim... bem...). Era sempre à sombra de um velho fícus que se erguia impávido frente à casa dos meus avós maternos e que, dentre outras, deve ter assistido aos primeiros votos de amor trocados por meus pais ainda não tão mal-intencionados em produzir este que escreve. O fícus já se foi sacrificado em nome do asfalto que plantaram rua afora. Tinha, penso eu, coisa de quatorze pra quinze anos, aquela idade em que você se sente a própria cria dos deuses, imortal e acima de qualquer julgamento. Éramos em numero de cinco, todos armados até os dentes de surdo-de-marcação, pandeiro, tamborim, cavaquinho e ganzá. O surdo era uma gracinha. Fabricação mais que caseira, se constituía em uma folha de compensado dobrado em cone e coberto por uma pele de bode, ainda com os pêlos, o que roubava parte da dignidade do instrumento. A despeito da cerrada atenção das forças repressivas (leiam-se pais, mães, e correlatos), rios de caipirinha escorriam entre um samba e outro. E era samba que não acabava mais. Revolvíamos os escaninhos dos morros como se fossemos os mais empedernidos malandros, lenço na moleira e tudo. E assim, aprendizes de sambistas, varávamos o dia e a tarde.
Nos intervalos, a polêmica: Nos domínios das grandes escolas de samba, qual delas realmente podia se paramentar de prima-dona da música popular? Tinha sempre um mangueirense de carteirinha desfiando condescendência aos portelenses de plantão. Vila Isabel estava sempre por lá na pessoa do Noel Rosa que um colega fazia questão de esfregar nas fuças de quem passava por perto. O Gilberto Lóia (que martelava o cavaquinho sem a menor piedade ou pudor) não deixava esquecer o status de Bateria Nota 10 conferido a Mocidade Independente de Padre Miguel. Por essas horas eu virava um bicho de cor verde/branco e afiados caninos dourados, as cores de minha escola de coração: O Império Serrano. E ai de quem ousasse pelo menos insinuar que o estandarte da escola estava mal engomado no último desfile. Era sangue na certa.
Sou um apaixonado pela agremiação da Serrinha. Tenho verdadeira reverência aos seus pilares dentre os quais se alinham as sagradas pessoas de Mestre Fuleiro, Molequinho e Mano Décio da Viola, pra citar alguns do panteão. Foi em 1947 (roubando a letra do samba) que “...na casa de D. Eulália pintaram de verde-e-branco a bandeira do samba...”. De lá pra cá essa bandeira já foi nove vezes campeã.
Nos últimos tempos temos sofrido um bocado. O Império sobe-e-desce do grupo de elite com freqüência assustadora. Ultimamente parece se estabilizou no lugar que lhe é de justiça: o Grupo Especial. Olha, não estou brincando, é coisa de fanático mesmo. Esteja eu onde estiver, corro pra frente de um televisor pra ver o Serrano passar. E, confesso, nunca o fiz sem lágrimas a correr fartas e soltas. Em 2004 a coisa quase chega a um infarto. A Escola resolveu ressuscitar como samba-enredo a divina “Aquarela Brasileira” (não confundir com “Aquarela do Brasil”, do Ari Barroso) de lavra do Silas de Oliveira e composta para o carnaval de 1964. Todo mundo conhece o “...Vejam esta maravilha de cenário / É um episódio relicário / Que o artista num sonho genial / Escolheu para este carnaval/ E o asfalto como passarela / Será a tela/ Do Brasil em forma de aquarela...”. Quase não sobrevivia àquela madrugada de segunda-feira, quando da evolução da santa agremiação de Madureira, Sua Majestade o Império Serrano, Honra e Glória da Música Popular Brasileira.
Em 2010 a coisa promete a se observar o enredo: “João das Ruas do Rio”. Pois é. O Império vai passear pelas ruas de um Rio de Janeiro nascente, antigas artérias de muitas cores, cheiros e gostos. Já conferi no site da Escola (www.imperioserrano.com). Mal chegou o Natal e já antecipo fevereiro, agoniado que sou. É que o Império Serrano faz isso comigo. Papai Noel vai entender, tenho certeza.

ps - falando em 2004, naquele carnaval a Portela quase rouba a cena com o belíssimo samba "Lendas e Mistérios da Amazônia".

"... a lua apaixonada chorou tanto / que do seu pranto nasceu o rio-mar..."
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