domingo, agosto 22, 2010

1991-2011: 20 anos de cajazeirado


        Acho que era fim de 1989, talvez meados de 1990. Ainda em Mossoró, o Paulinho, amigo de copo e professor da área de Lingüística, me ligava. A Universidade Federal da Paraíba abria inúmeras vagas para professor efetivo no campus de Cajazeiras. Toparia eu o desafio de deixar as terras potiguares no caso de sucesso no certame anunciado? Hesito. Carreira construída em Mossoró, profundamente envolvido na cena cultural da cidade, colunista do jornal O Mossoroense, secular informativo local, não me percebia longe da Terra do Sal, dos meus amigos e familiares. Em verdade nunca tinha me passado pela cabeça deixar os números 1636-1648 da Avenida Rio Branco.

        Meu desconhecimento acerca de Cajazeiras era completo. Lembro bem que perguntei ao Paulinho: “Fica perto de João Pessoa?”. Minha ligação com o Sertão Paraibano era muito mais pelos nomes curiosos que enquanto criança ouvia dos passageiros que subiam ou desciam dos trens que se encostavam na estação ferroviária, frente a casa de minha mãe e que elegemos parque de diversão (para o desespero dos vigias). Sousa, Pombal, Cajazeiras eram nomes que reverberavam em minhas infantes “oiças”. Mas era só.

        O fato é que desabamos pra Terra do Padre Rolim, eu, o Paulinho e mil caixas de livros. Desembarcamos na velha rodoviária e nos instalamos no hotel do Sr. Vicente. O estabelecimento se encontrava lotado, gente de todos os quadrantes, todos amolando facas para encarar as provas que, se bem respondidas, garantiriam a condição de professor efetivo com dedicação exclusiva da Universidade Federal da Paraíba. 

        Tardezinha, dois dias antes do começo do concurso, sentamos em uma choperia lá na praça João Pessoa e não dá outra. Esgotados e tensos de tanto estudar, enchemos a cara de cervejas. De volta ao hotel, o anjo da guarda do Paulinho resolve dar um cochilo. O moço escorrega no banheiro e, às vésperas das primeiras provas, fratura o braço. O braço direito, que no seu caso, é o que segura a caneta. Mesmo assim ele segue em frente e resolve encarar a coisa, mesmo sem um “tentáculo”. Reprovado na primeira fase (sua extrema competência abalada pelo nefando acidente) o Paulinho arruma as malas e, junto com um monte de gente, volta pra casa. Fico eu e mais um punhado para peitar a segunda etapa do seletivo. Terminada ela, arrumo os panos-de-bunda e desabo de volta ao ninho. Nunca me incomodei com o resultado dessa aventura. De volta a Mossoró, os muitos compromissos do cotidiano relegam aqueles meses ao esquecimento. 

        Foi por volta das 23:00 horas em algum momento do ano de 1991. Tinha terminado minha décima quarta aula do dia e, completamente exausto, assistia em um velho videocassete o filme “Um Dia de Cão” estrelado pelo Al Pacino. O telefone toca. Levanto da rede e atendo um certo Prof. Valdeberto Lira que se identificava como Chefe do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal da Paraíba, campus de Cajazeiras. Me informava que a instituição chamava para assumir seus cargos os aprovados no último concurso para professor efetivo e que eu, naquela condição, era instado a manifestar-me. De momento não acreditei. Tanto foi assim que pedi ao então desconhecido Prof. Valdeberto que me fornecesse um numero telefônico para que eu retornasse. Desconfiava eu de um trote, prática sacanamente comum entre meus amigos que faziam da coisa um esporte (do qual eu era fervoroso adepto, confesso). Desligo e ligo de imediato para o número fornecido. Não era trote.

         O Prof. Valdeberto (até hoje pessoa a quem dedico profunda estima e enorme respeito profissional) não só era quem dizia ser, como também me jogava a bomba nos peitos: eu tinha pouco mais de 48 horas para assumir o cargo antes que expirassem os prazos para tal. Quase meia noite, desligo o fone e acordo todo mundo. Era assim que as coisas funcionavam lá em casa. Nada era decidido sem uma “assembléia” familiar. Na sala, reunidos de pijamas e camisolas, minha mãe, meus avós e tios-avós maternos. Coloquei a situação de forma clara. Eu tinha pouco tempo para tomar posse em João Pessoa e de imediato assumir o cargo em Cajazeiras. E pior. Para tomar posse eu deveria me desvencilhar de todos os meus vínculos empregatícios em Mossoró. Tinha de chegar em “jampa” com as exonerações nas mãos, completamente desligado de qualquer instituição, quer fosse pública ou privada. Quase duas horas da manhã, tudo decidido: eu deveria me mudar de mala-e-cuia para as margens do Açude Grande.

         Me acompanhava em minha nova vida, minha mãe. Foi “pêi-bufo”. D. Dione se apaixona pela cidade. Sempre muito reservada, mamãe me surpreendia com aquele rasgo de ligação que ela estabeleceu com a pequena urbe que nos recebia. Adorava ir à feira de frutas. Se comprazia em conhecer meus colegas de trabalho, quase todos recém chegados como eu próprio. Desmandos do destino, pouco tempo depois D. Dione é acometida por grave infarto e retira-se de Cajazeiras para não mais voltar. Não mais como residente, pois que seu estado inspirava cuidados.

         Mas não era somente minha mãe que Cajazeiras seduzia. A cada dia que passava as surpresas se acumulavam. Vinha eu de um centro quatro vezes maior que a “cidade do padre”. Por outro lado, tinha já palmilhado o Brasil inteiro, coberto dois dos paises platinos (Uruguai e Paraguai) e ainda metido metade de um pé em território argentino. O que diabos aquela pequena cidade tinha que tanto me fascinava? Hoje percebo claramente: Cajazeiras tinha (e tem) gentes e histórias. Tudo o que tinha visto mundo afora, percebia aqui uma pequena amostra. A banda de rock, os grupos teatrais, a tradição de luta no decurso dos pesados anos da Ditadura (com direito a bomba em cinema e tudo), o time de futebol ativo e vencedor, uma noite pra lá de boêmia. Isso e muito mais, sem perder o ar puro de província. Mas o que me pegou mesmo foram as pessoas. Com duas semanas no trecho parecia que aqui tinha nascido e me criado. Completado um ano de permanência, já não queria daqui sair. Tudo cheirava à comunidade. Até mesmo o campus respirava essa condição. Todo mundo conhecia todo mundo, e as picuinhas se esgotavam ante situações mais graves. Lembro-me de uma reunião sindical onde se falava do numero de professores ligados ao Centro. Éramos noventa e tantos. Hoje somos quase duzentos.
         Comecei a suspeitar do rumo do andor quando visitava Mossoró e mal botava os pés fora da casa de minha mãe. Sentia o esgarçar da ligação com minha cidade de origem, o vínculo restante residindo somente nos poucos familiares que ainda viviam na Avenida Rio Branco. E quando a visita se estendia me apanhava pensando no cotidiano, meu cotidiano, lá no Alto Sertão. O Zé Antonio, afiadamente perspicaz, já tinha cantado a bola: “rapaz...você é um mossoroino cajazeirado”. Na mosca, Zé, na mosca.

         O fato é que de lá pra cá assisti a despedida de muitos colegas de trabalho, transferidos por sua vontade à outras Universidades em cidades de maior porte (ou próximas a elas). Sinceramente nunca cogitei esse caminho. Bem que poderia fazê-lo. As vésperas de mudar-me, a Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, no intuito de garantir seus quadros, me convidava a tomar posse como professor efetivo, concursado que era naquela instituição. Declinei. Anos depois, investido do título de Mestre conferido “com distinção” por uma banca de enorme envergadura acadêmica (duas professoras ligadas a universidades européias e uma outra titular da Universidade de São Paulo – USP), percebia o caminho aberto para conquista de vaga em outros colegiados. Mesmo porque minha área de atuação (Arqueologia Pré-Histórica) não oferecia (e não oferece) fartura de profissionais qualificados. Nada me convencia a deixar Cajazeiras.

         Finalmente, aqui me casei (a Samara Figueiredo, hoje ex-esposa, mesmo assim ativa participante desta saga) e entre Cajazeiras e Mossoró acompanhei o passamento dos meus “velhos”. O último deles, D. Djamira, tia-avó e minha segunda mãe, viveu seus últimos meses aqui, na Terra do Açude Grande.

         Vidas vão, estão, chegam. E vem ao mundo e a mim Maya Jordana, minha filha, última na linhagem da Avenida Rio Branco e belíssima em suas metades alto-sertaneja e potiguar. A ela, principalmente, dedico esses 20 anos. 

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