sábado, outubro 21, 2006

Poética

Considero-me um homem da Prosa. Se incapaz de produzi-la com um mínimo de eficácia, pelo menos sou um ardoroso admirador dos que a dominam. Ver a palavra verter solta - redondinha a fixar - pensamentos, me enche de esperança e crença nos Homens. Já meu avô, o velho Guaracy, corria em duas raias. Hora uma, hora outra, revezava a condição de primeira dama e affaire entre a prosa e a poética. Foi por suas mãos que me foi apresentada a lírica de J. G. de Araújo Jorge. Acho que foi a Marinha nº 4, que logo reproduzo (fragmento):

“Quando a minha cidade levantará ferros e seguirá pelos mares do mundo?
Ou terei que me atirar às águas e fugir a braçadas para as ilhas que me acenam no horizonte?”

Corria ao encontro do adolescente a ânsia pelo mundo e suas coisas. E o poeta traduzia a inquietude que me carregava, fazendo-o de forma delicada, quase imperceptível, aspergindo-me a cálida sensação de não me encontrar sozinho, encantado pela música da vida. As esquinas seduziam pelo simples fato de esconder um lado e pela promessa do eterno “continuu”, de nunca se exaurirem enquanto vida houvesse e ruas a perscruta-la.
E não era (é) plástica a palavra, nas mãos de Araújo Jorge? Ele não escrevia: desenhava as coisas...

“Eram dois bicos, como dois bicos de aves
Só que tremiam sob o teu vestido...”
(Sensual)

E ainda sobrava tempo pra tripudiar da Física tornando matéria o imaterial, palpável o etéreo, sonoro o inaudível.


“Há um canto de pássaro no raio de luz
Que pousou na janela”.
(Alegria)

Foi em 1914 numa pequena aldeia do Acre. José Guilherme brincou de nascer para festa dos pais alagoanos e minha, a quem daria o ar da graça cinqüenta anos depois. Dizem que morreu em 1987. Digo “dizem” pois custa-me acreditar que certa entidades como J. G. , Rubem Braga, Vinicius ou Garrincha possam sucumbir à extinção. Isso ficou para nós pobres e finitos lugares-comuns de carne-e-osso. Os primeiros, se fenecem, o fazem em favor da morte, como um pequeno obséquio, prerrogativa dos imperecíveis.

“Quando te tenho sobre os joelhos
Penso que sei tocar acordeon
E brotam notas dos meus dedos que eu bem sei que tu ouves
Porque teus olhos estão dançando um tango...”
(Acordeon)

Seguem bailando seus versos, tempo a fora, mundo a fora. Se mudam as coisas e as cores, se escravos da relatividade a vida e o mundo, absolutos serão os segredos do íntimo. Sobre estes dorme a pena do poeta, para deleite de todos nós.

“Para mim, as ruas, as longas ruas, são negros conveses
Imóveis de um navio encalhado num estagnado porto.
Eu, – sou um marinheiro morto.”
(Marinha nº 3)




(publicação original em novembro de 2002, Gazeta do Alto Piranhas)

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