Considero-me um homem da Prosa. Se incapaz de produzi-la com um mínimo de eficácia, pelo menos sou um ardoroso admirador dos que a dominam. Ver a palavra verter solta - redondinha a fixar - pensamentos, me enche de esperança e crença nos Homens. Já meu avô, o velho Guaracy, corria em duas raias. Hora uma, hora outra, revezava a condição de primeira dama e affaire entre a prosa e a poética. Foi por suas mãos que me foi apresentada a lírica de J. G. de Araújo Jorge. Acho que foi a Marinha nº 4, que logo reproduzo (fragmento):
“Quando a minha cidade levantará ferros e seguirá pelos mares do mundo?
Ou terei que me atirar às águas e fugir a braçadas para as ilhas que me acenam no horizonte?”
Ou terei que me atirar às águas e fugir a braçadas para as ilhas que me acenam no horizonte?”
Corria ao encontro do adolescente a ânsia pelo mundo e suas coisas. E o poeta traduzia a inquietude que me carregava, fazendo-o de forma delicada, quase imperceptível, aspergindo-me a cálida sensação de não me encontrar sozinho, encantado pela música da vida. As esquinas seduziam pelo simples fato de esconder um lado e pela promessa do eterno “continuu”, de nunca se exaurirem enquanto vida houvesse e ruas a perscruta-la.
E não era (é) plástica a palavra, nas mãos de Araújo Jorge? Ele não escrevia: desenhava as coisas...
E não era (é) plástica a palavra, nas mãos de Araújo Jorge? Ele não escrevia: desenhava as coisas...
“Eram dois bicos, como dois bicos de aves
Só que tremiam sob o teu vestido...”
(Sensual)
Só que tremiam sob o teu vestido...”
(Sensual)
E ainda sobrava tempo pra tripudiar da Física tornando matéria o imaterial, palpável o etéreo, sonoro o inaudível.
“Há um canto de pássaro no raio de luz
Que pousou na janela”.
(Alegria)
Que pousou na janela”.
(Alegria)
Foi em 1914 numa pequena aldeia do Acre. José Guilherme brincou de nascer para festa dos pais alagoanos e minha, a quem daria o ar da graça cinqüenta anos depois. Dizem que morreu em 1987. Digo “dizem” pois custa-me acreditar que certa entidades como J. G. , Rubem Braga, Vinicius ou Garrincha possam sucumbir à extinção. Isso ficou para nós pobres e finitos lugares-comuns de carne-e-osso. Os primeiros, se fenecem, o fazem em favor da morte, como um pequeno obséquio, prerrogativa dos imperecíveis.
“Quando te tenho sobre os joelhos
Penso que sei tocar acordeon
E brotam notas dos meus dedos que eu bem sei que tu ouves
Porque teus olhos estão dançando um tango...”
(Acordeon)
Seguem bailando seus versos, tempo a fora, mundo a fora. Se mudam as coisas e as cores, se escravos da relatividade a vida e o mundo, absolutos serão os segredos do íntimo. Sobre estes dorme a pena do poeta, para deleite de todos nós.
“Para mim, as ruas, as longas ruas, são negros conveses
Imóveis de um navio encalhado num estagnado porto.
Eu, – sou um marinheiro morto.”
Imóveis de um navio encalhado num estagnado porto.
Eu, – sou um marinheiro morto.”
(Marinha nº 3)
(publicação original em novembro de 2002, Gazeta do Alto Piranhas)
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