sexta-feira, outubro 20, 2006

Estrelas

Sou um Carl Sagan que não colou. Com os pés devidamente plantados no chão, me apanho desprevenido a fuçar a natureza dos astros, estranha prática para quem na condição de Arqueólogo deveria dispensar suas atenções e curiosidades para baixo e não para cima. É uma coisa que se engancha entre o fascínio descomprometido que o boêmio devota à lua cheia e a veneração primitiva à divindade dos corpos celestes. Aproveito sempre os minutos de “black out” que vez ou outra apanham a cidade, e calha que a lua coopere assumindo sua secundaria condição de satélite (uma vez por mês ela tem um ataque de grandeza e resolve assumir as funções de sol noturno), para correr as ruas e as constelações. Deveria ser a medida do homem, as constelações. Observar estrelas, percebendo a alternância da cintilação fugaz e o opaco negro dos espaços entre elas, me coloca no devido lugar da Criação: um conjunto ordenado de moléculas orgânicas trepado num grão de poeira azul e úmido que gira desvairado numa perpétua ciranda galáctica. Sim, as estrelas tem essa capacidade. Elas baixam minha bola de forma impiedosa, relegando os nuances da Condição Humana ao seu devido plano.
A amplitude e a imperscrutabilidade do céu noturno torna mais amarga a parcialidade do Homem, seus desarranjos e desavenças. A equilibrada disposição das coisas do Cosmo me faz sentir um tremendo incômodo ante nossa incapacidade de produzir uma convivência social justa e estável. Somos o efeito desestabilizador no universo da Criação. Uma invenção, uma receita que não deu certo e que esperneia em busca da própria correção.
Sinceramente, não sei como alguém é capaz de manter a empáfia diante de um céu estrelado. E olha que tem gente que chega às raias da megalomania, como aquele velho amigo que não suporta o sentimento de solidão que lhe assola toda vez que contempla uma noite de estrelas. Segundo ele, a imensidão do Universo visível (sim, pois só enxergamos um naco dele) remete ao fato de constituirmos a única espécie pensante do pedaço. Não acredito em tamanho desperdício de espaço... Verdes e com antenas, ou mesmo respirando ácido sulfúrico, há de existir vida nas esquinas das galáxias. Se tenho dúvida quanto a "existência da existência" não é no espaço cósmico, e sim nos becos imundos que criamos aqui na Terra. E quanto a nos enquadrar como “espécie pensante”... sei não...
O fato é que sou viciado em “ouvir estrelas”, roubando do Bilac a feliz expressão. Neste caso, me refiro à intenção de ouvir e não ao fato efetivo de coletar nos tímpanos a canção do éter. Sim, tinha razão o bardo. As estrelas falam. Nossos radiotelescópios as escutam por nós. Por enquanto não somos dignos de realmente ouvi-las, nossos ouvidos tomados pelos lamentos do vilipendiado planeta em que vivemos.
E seguimos incautos, por vezes a contemplar ilusões. Segundo os astrônomos (os Sagans que deram certo), muito do que vemos não passa dos últimos espasmos de luminosidade de uma estrela em agonia e morte. Seu último refulgir viaja distâncias enormes até nossas incrédulas retinas. Entretidos a contemplar esses cadáveres cósmicos, passam despercebidas situações semelhantes nas vizinhanças do nosso cotidiano. Por exemplo, em época de eleições circulam por todas as vias certas forças há muito mortas, a despeito de nossa insistência em ceder-lhes atenção. Espero ansioso pelo refluxo de seu nefasto brilho e definitivo fim. Enquanto não acontece me apego as reais e imorredouras estrelas que insistentemente refulgem no negro background da política nacional.

(publicação original em 02 de agosto de 2002, Gazeta do Alto Piranhas)

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