terça-feira, outubro 17, 2006

Iê-Iê-Iê

Na verdade, ainda mijava nas fraldas quando os tão decantados anos 60 chegaram ao fim. Sou uma cria dos anos 70. Tempos malucos, a década de 70 representou uma grande ressaca das atribulações do decênio anterior. As pessoas lambiam suas feridas para encarar "os embalos do sábado à noite", exaustas das exigências do embate político e social que caracterizou a época precedente. É curiosa a saudade que sinto dos anos 60 já que não me fazia observador do momento, ou se o era, o fazia pelos olhos de uma criança.
Olhando para trás e sob a luz fria da isenção, percebe-se um mundo ebuliente. Em Paris estudantes levantavam barricadas e se confrontavam com o establishment. Nos Estados Unidos, pacíficos contestadores de longos cabelos e roupas coloridas marchavam pelas assépticas ruas de Tio Sam, em franca reprovação à suja estupidez institucionalizada a que se deu o nome de Guerra do Vietnã. O doce e suave “basta” sussurrado em Woodstock se integrou de forma indelével à Memória da Humanidade. Já na metade da década, os Beatles começam a encher o saco das baladinhas e do balanço meio Rockabilly, iniciando um processo de migração para uma música mais elaborada, responsável por sua inconteste condição de referenciais da cultura pop. Em 65 o disco Rubber Soul traz a adorável Norwegian Wood como que prenunciando o que se daria dois anos mais tarde com Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band. E por falar em Sgt. Peppers, aqui no Brasil uns baianos viciados em Bossa Nova tomam o disco, ouvem-no de uma golfada, misturam “alhos e bugalhos” e brindam o mundo com aquilo que se convencionou chamar Tropicalismo, síntese da aldeia e do globo, do regional e do cosmopolita, do quarteirão e do continente. Os bravos bárbaros açucarados do Recôncavo... De posse das letras explosivas de Chico - aquelas que conseguiam driblar a Censura - milhares ocupavam as praças em franca defesa do Estado de Direito. Cacetadas no lombo de dia se contrapondo ao doce regaço da namorada, de noite, no apartamento tomado pela melodia candente de João Gilberto. Contestava-se e se era contestado. A inquietude era a tônica do momento. É certo que no Brasil uns muitos “alguns” insistiam em trazer à imortalidade o Rockabilly dos anos 50, sob a tarja nacional de “Iê-Iê-Iê”. Curioso... começaram dez anos atrasados. Motonetas e variações coreográficas do twist já tinham cumprido sua parte na história do inconformismo adolescente norte-americano, seu público caminhando em direção mais madura. Ou seja, quando Lennon e McCartney aposentavam Love me Do para a soberba criação de Penny Lane, por essas terras tupiniquins se começava a gritar “She Loves You, ie, ie, ie...”. Ou talvez “feche os olhos e sinta...”. Uma turma alegre, leve, descomprometida. Iê-Iê-Iê e cuba libre com dez anos de atraso. Na verdade “cuba libre” era o mais perto que eles conseguiam chegar da Revolução... Com gelo, é claro...
O fato é que sinto falta, sem nunca ter tido o privilégio da observação in loco, da contundência da década de 60. Sinto falta dos jovens desta safra única. Hoje, a apatia impera em meio a balouçantes rabos. Que ressucitem, pois, os donos das ruas de Paris... Que se desperte o inconformismo verde-amarelo ante a imposição da ditadura da indiferença... Venham a nos socorrer os floridos hippies de Woodstock ... Presenteiem-me com o mundo, “gregos e baianos”... Mas meu apelo é vão. Daquela época única restaram, ironia do destino, os acordes simplórios do “Iê-Iê-Iê” e sua descomprometida euforia... Só que agora com cinqüenta anos de atraso...

(publicação original em março de 2002, Gazeta do Alto Piranhas)

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