quinta-feira, dezembro 06, 2007

A Chuva e Eu

(dedicada ao inverno que se anuncia)
Tenho uma íntima relação com a chuva. Acredito que esse interesse é próprio a todos os que calham nascer onde ela não se faz muito constante naquela história de quanto mais esquiva, mais atraente a musa. Contudo, a afinidade que lhe dispenso transcende as duvidosas simpatias geradas pelas necessidades mais diretas. Em que pese o reconhecimento de seu papel para a subsistência do bravo que corre esses tabuleiros e caatingas, minha fascinação pelo fenômeno palmilha as não menos tortuosas e áridas trilhas do Espírito. Confesso que no início a coisa era meio promíscua. Menino que era, não tinha o menor pudor em enroscar-me em seus braços, meio-da-rua, por sob “bicas” de zinco. Na verdade gritava minha paixão correndo todas as calhas do bairro. Rolávamos, escandalosos, sobre os pequenos riachos que se formavam rua a fora, eu e a chuva, em líquido e corrente ardor. Já nesta época era perceptível a negra presença do guarda-chuva que tentavam nos impingir como a forçar um trágico triângulo amoroso... A emblemática motocicleta da adolescência adicionou uma pitada de “rebeldia sem causa” ao namoro. Enforquilhando uma motoneta de cinqüenta cilindradas, oferecia meu corpo desprotegido à gélida carícia da água que caia indiferente à nefasta combinação asfalto molhado - lei da gravidade. Sim, éramos cúmplices... Bonnie e Clyde... Corisco e Dadá ... Como toda relação, a paixão arrefeceu e amadureceu da “caliência latina” para um amor equilibrado, conveniente, sereno. Os encontros passam a pedir comedimento. As esquinas e as calhas se constituem, nesta fase, eventuais e pitorescas aventuras a permear uma quase previsível mas sólida afinidade. Vinho branco e toalhas limpas lavavam as marcas do querer sob o contraditório aconchego de um teto em ritos que encerravam os breves e fortuitos encontros e, paradoxalmente, institucionalizavam nosso affaire. Hoje mantemos uma relação platônica. Seu toque já não me traz mais a mesma satisfação de outrora. Mas suas feições e sua personalidade mais me seduzem em úmido e transparente fascínio. Nunca me canso de observá-la se espraiar mundo a fora - voyeur descabido - desenhado por trás das persianas. Rendo-me sem termos a sua tez cinzenta e enevoada, ocasionalmente iluminada pela luz cegante e fugaz dos relâmpagos ... Seu hálito recendendo a mato toma-me o olfato me remetendo em êxtase a mágicos universos de quietas expectativas. Hoje, nos amamos em paz, eu e a chuva, sem as cobranças naturais às relações mais amenas e superficiais. Neste momento, nossas almas já não escondem segredos. Somos donos dos pensamentos e sentir um do outro. Sei quando ela se anuncia furiosa no ribombar dos trovões... Percebo quando se oferece lânguida na constância da prolongada pluviosidade chuvisqueira. Ciente sou de seu caráter por vezes volúvel, aparente na rápida e sem substância neblina de fim-de-tarde. Assim como tenho consciência de sua aversão à indiferença. Sabendo-o, ignoro-a por vezes. Conscientemente, deixo de percebê-la apenas para vigiá-la, extasiado, esqueirar-se furtivamente por entre as goteiras e tocar-me implorando a atenção que sei lhe devo e nego... Neste momento algo me empurra até as persianas...Posto-me então tempos a fio na penumbra seca dos recintos, próximo às janelas que me fornecem o portal por onde flui esse amor infindável, essa eterna afeição que impera imperturbável entre a chuva e eu.

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