quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Folia

Tinha de ser agora. Daquele carnaval não passava. Chega de tantos anos perdidos, tantos momos de arquibancada. Desta vez ele estaria na avenida e não mais apertado na multidão vendo a folia passar. E olha que foi preciso coragem para chegar ao ponto de ruptura. Já cinquentão, casado há trinta anos com a mesma mulher e pai de dois pequenos, representava o arquétipo do cidadão padrão. Profissionalmente estabelecido, conceito reconhecido na comunidade e pagador de impostos. É aquele que senta na primeira fila da missa aos domingos. Só que desde tenros carnavais enchia-se de estranha agitação ao assistir as troças meio-de-rua, mais ainda quando se deparava com os homens grotescamente travestidos de mulher. Ficava ali, por trás do cordão de isolamento, admirando a coragem daqueles foliões a distribuir farta irreverência. Como ele gostaria de despir-se da sisudez que comprou para mascarar-se a vida inteira e por um momento se transformar naquela borboleta bizarra, barba e bigodes por debaixo do rouge. Não era uma tendência ao transformismo, nem mesmo uma pontinha drag queen e longe estava das briosas fileiras gay. Era simplesmente um desejo, agora irreprimível, de se ver livre das convenções que o agrilhoavam ao cotidiano e mergulhar no descomprometido mundo dos confetes e serpentinas da forma mais veemente possível. Pois que seja. Vai ser este ano.
Devagarzinho, trabalho de formiguinha, começou a juntar adereços e escondê-los na loja onde detinha o cargo de temido supervisor de vendas. Uma peruca, aqui; um vestido comprado discretamente, ali; um soutien afanado do guarda-roupas da esposa, acolá.

- Dá notícia daquele soutien vermelho, Aderbal? Aquele bem velho que quase não uso? Queria doar junto a outras peças que não me servem mais – pergunta-lhe a companheira de tantos anos.
- Mas era só o que faltava, Adelaide... Como diabos vou dar conta de um soutien? Você não espera que eu vá usá-lo algum dia, não é? – responde corado a esconder o rosto por detrás do jornal que fingia ler.

Sábado de Zé Pereira. Era tardezinha, a hora em que os cordões saiam às ruas. Armado de uma falsa necessidade de conferir estoques na loja, nosso folião disfarçado corre a se paramentar no anonimato do depósito de mercadorias onde escondia seus adornos. O pior foi a meia-arrastão. Depois de quatro ou cinco quedas, Aderbal consegue vestir aquela armadura de lycra, escalando de imediato as alturas de um salto Luiz XV. No espelhinho do banheiro dos funcionários ele dá uma geral em si mesmo: Tava lindo. Mas será que a maquiagem lhe escondia mesmo a identidade? Pra prevenir, largou mais uns quilos de rímel na cara e foi á folia.
Mal põe o pé na avenida, logo atrás da orquestra, e a multidão o percebe. O danado era tão performático que de queima, arrebata larga ovação. Vencida a timidez, Aderbal libera a periquita. Saltita pra lá e pra cá, manda beijinhos e ainda chega a fingir um descarado desmaio ao lado de um bombeiro que guardava a festa. Mas logo ali na multidão ele vê a esposa e os filhos... Como os outros, eles aplaudem furiosamente seu desempenho...

- Meu Deus... fui reconhecido!!!!

O mundo começa a girar e gira mais loucamente ainda quando percebe que eles se dirigem a ele. Pronto. E não dá pra correr. O negócio é ficar e enfrentar a tragédia.
Olhos baixos, Aderbal, agora uma borboleta triste, assiste o aproximar-se dos pés do que já julga ser sua ex-família. E de olhos baixos ele ouve a voz de Adelaide, meio tímida.

- O senhor me desculpe, mas é que sua apresentação foi tão brilhante que as crianças gostariam de tirar uma foto... só de lembrança. Isso se não ofendê-lo...

- Cl...cl..claro, madame – gagueja Aderbal, seguro no anonimato.

Toma as crianças de lado, se arruma em uma pose forçada e submete-se, pálido debaixo da maquiagem borrada de suor, ao flash da câmera. Estupefato, devolve o agradecimento e assiste sua família afastar-se contente. Mas ainda captura no burburinho da rua o comentário melancólico, largado a esmo por um dos pequenos:

- Queria que papai fosse assim... tão feliz...

......................................

UM EXCELENTE CARNAVAL AOS AMIGOS E AMIGAS QUE, GENTILMENTE, FREQENTAM ESSE ESPAÇO

Nenhum comentário: