quinta-feira, abril 22, 2010

ceia

Não tem como o esquecer o chamado de minha avó (as vezes, mamãe), "o almoço está na mesa". Era "na mesa" mesmo e não "à mesa". Largávamos tudo o que estivéssemos a fazer (na maioria das vezes sob os mais largos protestos já que aquele jogo de bola não podia esperar) e sentávamos todos (minha avó, avô, mãe e irmão - meu pai tinha pedido licença sem remuneração do casamento) em uma mesa comprida na velha cozinha onde iniciávamos a dança dos pratos ("passa o feijão vó?") e as querelas típicas de uma ceia em família. Sim, pois para os meninos tinha sempre um "... vai comer só carne? vai deixar pros outros não?”.
Á mesa, se comia e se conversava. O meu avô (o Sr. Guaracy Gurgel, o Homem dos Livros) sentava-se à cabeceira, sempre de camisa (lhe era inadmissível cear de peito nu), a distribuir olhares de carinho. Ao fundo, um rádio ligado no noticiário local. Mas tarde dividi morada com os tios-avós maternos (meus segundos pais), casa que ficava coladinha - parede a parede - com a dos avós. Para lá fui pois dispunha de um quartinho onde se podia estudar até de madrugada para o vestibular . Acabei ficando por anos, até vir para a Paraíba. O curioso é que tinha de dividir as refeições. Almoço na casa dos tios-avós (Sr. Eduardo e D. Dejamira) e jantar na casa do avô (aquela da mesa comprida). Pois bem, nesta nova situação a coisa era idêntica quanto às refeições. Almoço sempre mesma hora (meio-dia em ponto). À mesa, minha tia-avó, meu tio-avô e eu. Ao fundo, um rádio ligado no noticiário local. Esse é um hábito que trago até hoje. Almoço sempre acompanhado de um rádio ligado no noticioso do momento (em AM, claro...). Mas são meros coadjuvantes esses elementos. Não roubam a cena.
Volto à casa dos meus familiares e suas refeições. O verbo era sempre o prato da vez. Não se comia em silêncio. Falava-se. As vezes a coisa desandava para a política. Então jovem estudante de Agronomia (muito antes de migrar para a História e a Arqueologia ), era eu simpatizante ferrenho do PCB , “O Partidão”, para depois emprestar minha fidelidade ao jovem PT (longo suspiro). Me "atracava" a brandir talheres com meu tio-avô, "emedebista" histórico, em intermináveis querelas... Toda a família era “emedebista”. Me orgulho disto. Nunca ninguém maculou a consciência emprestando sufrágio a ARENA e sua corja de apoio à ditadura. E assim fui educado. E assim quero educar minha filha. Dizia sempre D. Dione, minha mãe: “É disso que o país precisa: famílias à mesa a jogar conversa fora”.
Mas o que justifica este ataque súbito de nostalgia? Os escritos de dois amigos que me enriquecem com sua correspondência (a mágica do e-mail). De Portugal o Antonio Vilela escreve:

“À mesa um rito de comer e conversar.
À mesa a família recebendo um velho amigo.
À mesa memórias de antigos encontros vêm à tona.
Pratos e pessoas, que não estão ali, convertem-se numa doce névoa, invisível, perpassando a mesa com os que estão presentes hoje, imersos no agora, mas envolvidos na trama do tempo que nunca cede.”

Do extremo sul do Brasil, a Beatrice Mas responde:

“...a mesa é a hora e a vez dos armistícios familiares,
emocionais, políticos, de todos os matizes...
o que senta à mesa de peito aberto e coração limpo,
como deve ser em família, e até fora dela,
levanta da mesa de alma lavada, forças renovadas,
espírito e corpo alimentados para continuar...”


Daqui do Sertão, degusto a existência das pessoas de bem que sei ainda se sentam às mesas mundo afora, não importando o grau de abastança que por elas – as mesas - se estende... em paz, sempre, em paz.


legenda: na foto lá em cima, Seu Guaracy (avô) e Dona Mundica (avó) em imagem que me é muito cara

Um comentário:

Penélope Nóbrega ( Pedagoga) disse...

Nossa, voltei ao passado!!!
Lembraças caras,lembraças de uma vida bonita, simples mas real, verdadeira, de pessoas maravilhosas que apredi a amar e respeitar.