terça-feira, julho 25, 2006

Desculpas... com vinte anos de atraso

Sou daqueles que já nasceram estressados... Agoniado desde o útero, sou incapaz daquela coisa meio oriental, paciente, sistemática, um tanto quanto aracnídea - um ponto ali, outro aqui, com alguns momentos de reflexão entre os dois. Estou mais pra tempestade que pra brisa. Mais pra vaga que pra marola. Quanto mais coisas eu conseguir fazer ao mesmo tempo, melhor. Para mim o supra-sumo da Criação, sem dúvida nenhuma, é o polvo e os seus oito braços... Oito braços!!! Já pensou nas possibilidades??? Pois é. “Inquieto” é uma palavra leve se aplicada ao meu caso. Se por ventura eu adentro um recinto e lá no fundo se acha a Miss Universo pelada, nem espere que lá eu concentre meu olhar mais lascivo. Apanho tudo. A estria quase invisível da bella dona, a rachadura na parede do lado direito, a goteira na terceira telha da quinta fila de lá pra cá, e a chatice do conjunto - o que me faz dar as costas ao espetáculo e ir em busca de outra coisa que - com certeza - se esgotará em alguns minutos também... Volúvel. Acho que sou um "volátil e volúvel" animal. Por favor. Não é o caso de trocar o profundo pelo superficial. Posso até voltar lá e demorar anos a conferir um detalhe que apanhei na tarrafada de impressões iniciais, do conjunto.

Mas quando o assunto é música, a coisa muda de figura. E - cumprindo a sina de Homem de Extremos - corro ao lado oposto do espectro: me torno extremamente pontual no sentido de concentrar atenções. Quando me dou com um achado, quando ocorre o raro magic touch, pronto: vai ser só aquilo pelos próximos meses, talvez anos. Me debruço e espremo a coisa até a última gota. Ouço, leio, escrevo, debato, ouço de novo, e de novo, e de novo, e de novo... Se, nesse momento, passar por mim a Sinfônica de Berlim a tocar em tutti minha peça favorita, pode ter a certeza que desfilará em branquíssimas e surdas nuvens... Estarei ocupado. Todo ouvidos... só que pra outra coisa. Por isso passei batido na década de 80. Claro que o óbvio ficou em minha cabeça. Foi uma década onde o óbvio era por demais ululante pra passar despercebido. Mas, foi só. Estava muitíssimo ocupado com o Rock Progressivo, ícone sonoro do decênio anterior, principalmente no seu aspecto instrumental. Música com menos de 20 minutos era canção de ninar. Uma peça sem - por baixo, por baixo - um solo de qualquer coisa que não ocupasse metade da audição não valia a pena ser ouvida. E aí dancei geral. Era a época áurea do pop rock nacional, o “Brock”. Melodias de uma simplicidade de dar dó. Uma guitarrinha aqui outra ali só pra emoldurar. Não dava pra mim. Também, como podia eu, enterrado até o pescoço em Shine on Your Crazy Diamond e seus infindáveis capítulos, me ocupar com - por exemplo - "Becos" (Paralamas) montada sobre uns dois ou três acordes???? A letra que se lascasse. Letra por letra tava lá o pessoal da MPB, com seus Chicos e Caetanos a dar de "olé" em qualquer um que se aventurasse à rinha. O Cazuza ainda me chamou atenção ao ponto de apanhar quase toda sua obra. Isso depois de algum tempo. Pois, radicais de plantão nos bares, a gente achava meio duvidoso uma banda onde um era filho de um deputado (ou o que o valha) e o outro filhinho querido de um dos executivos da Som Livre (a gravadora da Globo). Convenhamos... Era meio suspeito o sucesso dos caras. Só preconceito besta mesmo... Até o mais empedernido dos mentecaptos se curva ao talento do Barão Vermelho e do Cazuza. Mas é que todo mundo era meio azedo a respeito do tema, inebriados que ainda estávamos com os ventos setentistas. Capital Inicial, Nenhum de Nós, Biquini Cavadão, Engenheiros do Hawai, Ira, Ultraje a Rigor, Zero, RPM e correlatos?!?!?!? Nem pensar!!!!!! O Engenheiros era muitíssimo crucificado só por birra com o band leader, o Gessinger. O RPM, esse é que não se dignava a granjear minha audição: o Paulo Ricardo era bonitinho demais pra ser competente... Falando nisso e passando ao plano internacional, o A-Ha era simplesmente insuportável. O vocalista também era muito bonitinho e tinha uma porção de garotas suspirando na primeira fila. Pronto. Tava estigmatizado. Era coisa de pequeno burguês. Não estava a altura de nossos politizados e progressivos ouvidos. Dos noruegueses boa pinta ainda se dignava a escutar "Scoundrell Days", e olhe lá...

O fato é que, de uma tacada só, perdi de acompanhar - em tempo real - toda uma miríade de tendências que transformava o cenário pop, aqui e em Marte. Quando comecei a me cansar das ginásticas poéticas do Chico (uma Nadia Comaneci das palavras...) e dos longos e pentatônicos solos do David Gilmour, era tarde demais. O Titãs já estava prestas a gravar baladinhas de merda, o Capital Inicial já não era tão “inicial” assim e o Renato Russo - esse poeta pop que beira a completude - já se deitava à cova debatendo "o subjetivo intrínseco ao decompor da matéria" com os vermes que o comiam (quando vivo, muitos vermes o comeram também...).

Veja que não era uma ojeriza generalizada ao pop-rock nacional. Era o peso dos clássicos que ocupava espaço. A sombra desses últimos encobria o que pintava de novo, a linguagem redescoberta na música tupiniquim. Ouvia a Rita Lee, o Lulu, e o 14 Bis. Mas perceba que todos os citados ou caminharam pelo progressivo ou traziam alguma ligação com as Eminências Pardas da MPB (é o caso do 14 Bis, ligado ao pessoal de Minas, Clube da Esquina e coisa e tal). Era, creio agora, um surdo com o ouvido bem afinado.

Tenho tirado o atraso nesses últimos anos pelas mãos da ala Garbosa Infante do Arlequim Rock'n'Roll Band. Tenho repassado a coisa toda (e na maioria dos casos, "passado" mesmo, sem o "re", pois que muito nunca tinha nem ouvido). E que coisa!!!! O som é mesmo simples... Mas a poesia é de encantar. É lépida, satírica, audaz, inquieta, transgressora, incômoda e ácida. Tudo junto e sem perder a alegria que induz a reflexão... Em muitos casos o lirismo do pop oitentista traz uma sutileza digna dos nossos maiores menestréis.

Os caras foram até às raízes do Rock'n'Roll e de lá trouxeram a "pegada", o riff simples de poucos acordes, mas que lhe toma alma e corpo num átimo. E fizeram mais: tascaram dentro dessas harmonias, verdadeiras pérolas da língua. Pra que se tenha idéia de como isso me atingiu, nos últimos meses larguei a mania de estudar e exercitar solos na guitarra... Quer dizer, não larguei de tudo, claro. Mas agora tiro um tempo pra formatar as bases distorcidas. Outro mundo, de técnicas bem diferentes, esse da guitarra rítmica. E é um barato. A "batida" de "Veraneio Vascaina" e "Geração Coca-Cola" na versão do Capital Inicial (quando faz um "remake" do abortado Aborto Elétrico) é de prazerosa execução. Coisa pra se divertir mesmo... A redescoberta do prazer de tocar sem a preocupação com o virtuosismo... só tocar.

De forma que, peço desculpas... Peço as mais calorosas desculpas a mim mesmo pelo que me privei. Sim, pois os meninos "oitentistas" estão cagando e andando pra minha inflexibilidade pseudo-intelectual "setentista". Peço escusas a mim mesmo em todos os planos. Por não ter dançado ao som do Pet Shop Boys e não ter viajado na voz belíssima do Morten Harket (vocalista do A-Há). Mil perdões a mim mesmo pela cara feia que fazia quando no bar "The Wall" (reduto rock nos velhos tempos em Mossoró) subia ao palco alguma "bandinha" pop rock tomando o tempo do meu precioso contrabaixo e suas viagens alucinantes, intermináveis e chatas. Mea culpa, mea culpa, mea culpa.



PS - Mais que recomendo, sobre o universo pop rock da década de oitenta (com uma rica contextualização - se bem que rápida - sobre a sonoridade dos anos 70)
"Dias de Luta - O Rock e o Brasil dos Anos 80", Ricardo Alexandre, Editora DBA, 2002

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu caro. Nunca é tarde para voltar atrás, principalmente quando essa volta for relacionada à música. As manifestações culturais nos anos 80 foram reflexo de uma época em que tudo conspirava para um "modus vivendi fruto da inquietude...", de luta "sem aquela farda...". Com toda certeza, foram "dias de luta". E os analistas ($$$) do "real" falam em uma década perdida...