sexta-feira, abril 06, 2007

Sangue e Paixão

(publicada originalmente em abril de 2004
no semanário Gazeta do Alto Piranhas)
E vamos de polêmica nesta Semana Santa que se aproxima. O Mad Max Mel Gibson ataca agora de Jesus Cristo em sua versão da Paixão. Mal os primeiros “frames” brilharam na tela e as vozes se levantam em acirrado debate. Mais um pouco e vivemos um cisma da cristandade desta feita sob a responsabilidade um tanto herética de Hollywood. Ainda não vi o filme, reservando-me a colher as críticas disparadas em largas rajadas pelas facções contrárias e favoráveis a versão do Máquina Mortífera Gibson.
Pelo que pude perceber os inquisidores de plantão baseiam suas farpas em dois argumentos que, “per se”, já reservariam vagas no inferno para todo o elenco e ainda com lugar nas arquibancadas para os que assistiram e gostaram. Sem contar que reduzem a obra ao nível dos filmes de horror tipo C onde o sangue esguicha aos baldes. Em primeiro lugar, clamam que a película reafirma o anti-semitismo quando coloca sobre ombros judaicos a responsabilidade pela morte do Galileu. E daí? Encarar a verdade histórica de frente não faz mal. Qualquer um com um mínimo de leitura cristã percebe claramente a dissidência inaugurada pelo Cristo quando de suas pregações. Tomando a si o encargo de Messias, filho de Deus, Jesus fere o judaísmo institucionalizado que reage exigindo sua punição. Os romanos ficam a bocejar, de longe, na base do “resolvam vocês esse pepino...”. Daí a condenar todo um povo vai uma distância hitlerista. O próprio Jesus era judeu, seu Pai era, e se não me falha a memória continua sendo, o Deus dos judeus. Por tabela, também o nosso. Esse argumento de que a obra acirra o preconceito contra o povo judeu caberia somente aos nécios e nazistas, se me perdoam a redundância.
Seria condenável também a violência de determinadas passagens. Mesmo não tendo, repito, assistido ao filme, gostaria de tecer alguns comentários sobre o fato. O uso da violência no cinema é viável quando envolvida por um enredo que a justifique. Quem não lembra d’ “Laranja Mecânica”? Sangue por sangue, isso sim é apelação e recorrência ao mal(u)-gosto. Não me parece que a história do flagelo e ressurreição do Cristo seja um enredo banal. Me irrito profundamente ante as versões homeopáticas da Paixão que, de olho na melhor parte da história (a Ressurreição), reduzem o flagelo de Jesus ao arrancar de um dente. Crescemos acreditando no sofrimento do Messias, sofrimento esse travestido de uma certa pieguice que nos mostra um Cristo quase saltitante de alegria a correr para a cruz onde seria pregado com durex. Gente, aquilo doeu e muito. O suplicio romano da cruz era de uma crueldade impar e no caso do Galileu, conta-se o acréscimo de certos “requintes”. O látego usado no flagelo, creiam-me, não era feito de seda. O açoite romano (o “flagrum”) era uma terrível peça de couro com pontas ferradas que lanhavam a carne até os ossos. Posto na cruz o condenado agonizava lentamente até ter suas pernas quebradas para acelerar a morte por asfixia, já que o peso do corpo sem sustentação levava a este fim, uma benção naquele mar de dores. A Jesus foi negado esse “privilégio”, caindo sobre si a barbaridade do suplício em toda a sua extensão. No fim, mas no finzinho mesmo, um legionário de nome Longinus, lhes trespassa a carne com um “pilo”, a lança de combate das legiões romanas. É bom que se mostre claramente o quão brutal, sangrento e doloroso foi o caminho trilhado pelo Cristo. Talvez assim a humanidade crie vergonha na cara. Talvez dessa forma, a hipocrisia que acompanha tantos que se arvoram cristãos ceda lugar a uma profunda reflexão sobre os caminhos do Homem, perdido nos labirintos da futilidade e no vazio dos falsos valores. Talvez o cru das cenas do filme nos leve a segundos fugazes de constrangimento, ao perceber que, no andar da carruagem, fazemos tudo aquilo parecer vão...

Nenhum comentário: