segunda-feira, setembro 03, 2007

Ocaso

O homem velho caminha de forma incerta junto ao muro que ladeia a calçada. As pernas que um dia tentaram abarcar o mundo quase não mais conseguem superar os poucos metros de concreto que se põem a sua frente. É tardinha... Exatamente quando a cidade ferve em seu segundo rush, aquela figura lenta sobre a calçada se apresenta como a negação ao movimento forçado, à pressa urbana, a lepidez dos adolescentes. Logo ele que, por falta de tempo, tem todos os motivos do mundo para se apressar. Logo ele que, como o sol da tardinha, tem plena consciência da inevitabilidade do ocaso. Um fim de expediente sem direito a happy hour, sem martinis e brindes informais ao pôr-do-sol. Indiferente à matemática dos anos, o velho tece com seus passos curtos um poema de exaltação à serenidade.
É quase um contra-senso o rítimo daquelas pernas. Um insulto à lógica moderna que estabelece uma relação de proporção inversa entre a disponibilidade de tempo e a rapidez do movimento. Claro que mesmo em seus melhores dias o ancião longe estava de um Ben Johnson. Que dirá agora... Mas pode-se perceber que seus movimentos em slow-motion representam muito mais uma opção que uma imposição de um corpo apanhado nas teias dos muitos calendários. Percebe-se isso quando das constantes interrupções do trajeto pelos motivos mais banais, como a observação daquele pardal, exemplo emplumado de um lugar-comum ornitológico. Exasperante observar os minutos de atenção que são gastos em “boas tardes” servidos de antepasto a um cardápio variado de sorrisos e comentários amenos, antevendo um “passar bem” de sobremesa. Esse banquete de gentilezas é ridículo para nós, apressados de carteirinha. Em se tratando de cortesia, nada mais prático que os “ois” que distribuímos a granel, espargimos pela janela do carro, frios e impessoais como um ofício circular. Cortesia moderna, fast food de quem não tem tempo a perder com amenidades.
O homem velho segue impassível em cima dos seus passos miúdos com a tranqüilidade de quem tem um saldo enorme na contabilidade dos dias. Para o lépido transeunte, apenas um monte de anos ambulante. Até ser preso por seus olhos... Meu Deus, quantas imagens estão presas nessas exaustas retinas... Vê-se um infante a saltar por trincheiras em algum lugar da posta sanguinolenta que foi a Europa da década de 40... Vislumbra-se o vulto garboso de um dançarino de tango perdido em algum cabaré esfumaçado... Percebe-se a lassidão de um amante satisfeito amarfanhado entre lençóis de cetim... Tudo de forma pausada e envolvente como os suaves acordes de um fox trot.
Uma época caminha de forma cálida junto à parede que ladeia a calçada na segunda hora do rush... Impávida sob a condescendência dos que a ultrapassam rumo a não sei onde... Altiva em sua fragilidade por se saber mais completa e original. Abram alas homens e mulheres que caçam amanhãs com a avidez egoísta daqueles que ainda nem digeriram o hoje. Que se curve ao mestre e senhor de todos os melancólicos ontens a banalidade leda. Declinem seus respeitos, não de súditos, mas de sucessores. Eis que todos são candidatos ao título. Ninguém escapa à linha de sucessão senão desposando o trágico antecipar da morte. Que se sinta pois o peso da inevitabilidade do ocaso. Que se viva profunda e intensamente para que se possa um dia caminhar plácido na hora do rush, um fim de tarde qualquer, junto às paredes que ladeiam as calçadas – em moderno contraponto – a observar os pardais.
(para Djamira e Eduardo....
Mundica e Guaracy...
D. Dione...
Enfim, a mim mesmo, anos depois...)

Um comentário:

Blogedups disse...

Caro Paccelli Hendrix
Ainda não recebi aqui em Brasília o Gazeta do Alto Piranhas desta semana, mas acredito que este primor de crônica esteja lá. Você acertou em cheio, de prima, bola quicada pra encher o pé e acertar no ângulo. Você deveria ter terminado de fazer um solo em sua guitarra e continuado essa inspiração no teclado do pc. Parabéns.