quinta-feira, setembro 20, 2007

Punhos e Varandas

Momentos se fazem em que nada mais nos afigura senão reconhecer a impossibilidade das coisas. Nunca é fácil ser apresentado, sem rapapés, aos próprios limites. Neste momento descobrimos que vontade nem sempre basta e que determinadas situações se configuram indiferentes a quereres. Pois bem, a partir de hoje reconheço minha derrota, desistindo por todo o sempre de dormir de cama. Dobro-me ante a impossibilidade de me atirar sobre uma cama e cair nas graças de Morpheus. Acho que a origem do problema deve vir, paradoxalmente, do berço. Filhote que era, dividia as horas de sono entre ele – o berço - e uma rede aberta pelos punhos por um cabo de vassoura. Acho que mamãe deve ter privilegiado a rede de forma que qualquer superfície razoavelmente plana e acolchoada me é simplesmente desagradável ao descanso.
A bem da verdade e aqui em específico, a cama que fica no quarto de dormir tem seus méritos e serventias. Armada minha rede, onde colocaria o livro, o relógio e o descongestionante nasal, acessórios pessoais imprescindíveis a uma regular noite de sono, senão na beira da cama que assessora a rede armada? Usa-la de outra forma é comprar um lancinante desarranjo anatômico que me acompanha todo o dia seguinte à noite mal dormida.
Confesso que durante anos insisti em um convívio razoável com colchões e travesseiros. Mesmo por força da necessidade, pois, viajando com certa freqüência, na maioria das vezes não era tarefa fácil conseguir armadores e redes a postos para satisfação do meu nordestino letargo. Neste aspecto Roma me deixaria à vontade. Por lá reside um grande amigo, amante como eu de uma boa e avarandada rede, fato que eleva o seu apartamento sito no número 3 da Alfonso Borelli, ao status de única moradia européia armada de tornos, acredito. O fato é que desde que me entendo por gente apanho-me rolando de um lado para o outro das mais diversas camas tentando fazer as pazes com estrados e molas, na vã esperança de ser obsequiado com algum lapso de sono reparador. Não tem jeito. Quando muito, me resta uma Vitória de Pirro patente no corpo moído e desconjuntado. Isso posto, desisto.
Mas não me afeta essa retirada. Antes fico extremamente feliz por assumir essa incapacidade e finalmente poder desfrutar de minha “tipóia” com a tranqüilidade de quem tentou de tudo. Mas que seja dito que a antipatia entre a cama e minha pessoa é mútua. Tenho a cama como um indiscreto mostruário onde se expõe o Homem em seu momento de maior fragilidade, a inconsciência do sono. Uma prancheta onde se estica uma folha de papel escancarada, disponível, predisposta a qualquer traço ou rabisco, indefesa e submissa à planura do estrato em que repousa. Já a rede não. Ao deitar-me sobre seu pano envolve-me de imediato o abraço acalentador, a muralha de tecido constituída por suas bordas que, erguidas, constroem um aposento muito pessoal, somente meu, indevassável a proteger-me dos monstros e fantasmas que habitam todos os quartos de dormir. A rede não reage agressivamente ao meu toque. Ao contrario da cama, tão hostil em sua constituição que exige sempre a intermediação de um colchão, a rede se amolda lânguida as características tão assimétricas de mim mesmo. E assim livro-me de minha miserável condição de animal terrestre e descanso, levitando no meio do quarto, envolto em lençóis noite adentro, neste casulo antigravitacional que me é tão confortavelmente caro.

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