segunda-feira, março 31, 2008

Eu e o Mar

I

Sou um homem do litoral exilado longe dele. Não o litoral que definimos em linguagem sertaneja. As capitais, as cidades enormes, suas disponibilidades, seus shoppings. Não me refiro a isso. Não me vem à mente a praia da capital, qualquer que seja ela – a praia e a capital. Pra mim é uma excrescência plantada a beira d’água, a praia da cidade grande litorânea. Nada que um degelo rápido da calota polar não resolva...Sou capaz de passar semanas em uma delas sem pôr os pés perto da água salgada. Para mim é líquido corrompido. E não me refiro aos coliformes que ocupam o lugar de peixes e algas. É que, como disse, sou um homem do mar. Da praia, a bem da verdade. Assim sendo, não me apetece aquela estreita faixa de areia espremida entre os últimos edifícios e a linha da maré. Acredito que exista areia por baixo do amontoado de barracas e banhistas, seus dejetos e vaidades.
Não senhor. Cresci vendo o mar de verdade. A praia, prelúdio ou epílogo do Mar Oceano. Todos os anos, quando criança, a mãe nos arrastava a beira-mar por umas semanas. Em tributo a sinceridade, arrastávamos nós, eu e meu irmão, Dona Dione à praia. Tibau era a eleita, sempre. Não, caro leitor, você não conheceu Tibau. O que você conhece hoje é uma caricatura grotesca e coberta de moscas do que foi uma das mais belas estâncias praianas do litoral potiguar. Merece hoje o apelido que carrega: A Favelona. Vi Tibau sem calçamento. Andávamos em suas ruas, pés no chão. Aliás sapatos e sandálias eram as primeiras coisas que determinávamos supérfluas lá chegando. E lá chegávamos ansiosos, trepados num “misto”. Era como chamávamos o caminhão que fazia a linha até a dita. Uma espécie de pau-de-arara.
Foi lá que aprendi a pescar ainda muito menino. É um habito que carrego ainda hoje. Vizinha a casa que ocupávamos, erguia-se uma palhoça que abrigava aquele que para mim era o mais intrépido lobo-do-mar desde Sir Francis Drake: “Seu” Antonio Coco. Seu Antonio, marido de Dona Ana, pai por adoção de Genaro. Se Hemingway tinha seu pescador, inveja não me fazia.
Seu Antonio, velho mestre de jangadas aposentado, passava o dia deitado em uma rede de cordas no alpendre de seu casebre numa paz que só durava até nossa chegada. Sua vida virava então que acredito seria uma das mais violentas tormentas oceânicas. É que não dávamos sossego ao homem-do-mar. Sentávamos ali por perto e o instigávamos a contar suas histórias. E que histórias. Minha predileta era aquela em que sua jangada vira debaixo de um vendaval. Trepados na tosca nau emborcada ele e seus companheiros travam conhecimento com um navio cargueiro que lhes oferece socorro. Em língua enviesada, os gringos queriam levar Seu Antonio e sua tripulação com eles. Não sei por que cargas-d’água Seu Antonio recusou. Preferiu ficar até ser resgatado por uma outra jangada...


II

Casa de taipa, chão limpinho de terra batida, fogão de lenha, teto de palha: eram os domínios de Dona Ana. Se as ondas e a imensidão do oceano eram feudos incontestáveis de Seu Antonio Coco, sua soberania se acabava nos limites da palhoça. Ali era território de Dona Ana. Dona Ana e suas tapiocas e beijús. Dona Ana... Pessoa dulcíssima, presença augusta entre linhas e bóias, tarrafas e tresmalhos pendurados nas paredes, amontoados no quintal. Dona Ana que nos dedicava um carinho tão infinito quanto o azul do mar. Dona Ana de cabelos grisalhos presos em um coque por uma “marrafa”. Dona Ana que findou seus dias viúva, entrevada numa cama, em uma casa nova adquirida pelos filhos e filhas. Casa de alvenaria, luz elétrica e água encanada. Casa nova, bem afastada de sua palhoça, comprada por turistas e demolida para construção de mais um chalé. Nunca soube que sua antiga morada tinha sido posta ao chão. Acho que não suspeitava o que se passava por toda Tibau. Como disse antes, presa em uma cama, Dona Ana olhava o mundo pelo esquadro de uma janela. Foi poupada de ver o que acontecia com sua (nossa) Tibau.
Genaro era o filho adotivo. Alcoólatra, quase mais não pescava. Ficava ali, a espera das jangadas a negociar para revenda. Sempre trazia um presente para nós: cabeças de lagosta. Vendido o corpo (o filet), ficavam as cabeças que os pescadores traziam para casa. Genaro sempre dividia essas iguarias como minha mãe e nós. Aprendi a gostar de lagosta por sua parte menos nobre mas não menos saborosa. E foi Genaro quem primeiro me “entralhou” um anzol. Isso para pesca de água salgada. Quem primeiro me armou um caniço de pesca foi mesmo minha mãe. Era pra pegar piabas nos rios de Mossoró. Mas a grande pesca (tá certo, a menor da grande pesca: a praieira de linha) me foi apresentada por Genaro e os seus confrades de Tibau. Seu Antonio Coco nos passava a teoria, a filosofia, os conceitos da coisa. Genaro operacionalizava. Na verdade Seu Antonio me parecia enjoado do mar. Raramente o víamos a beira-mar. O fato é que armado de meu primeiro “espinhel” (uma linha nylon, chumbada na ponta e três anzóis em seqüência) fui fisgado por ele. Todos os dias, desde a chegada, acordávamos logo ao nascer do sol, eu e o Loirinho e corríamos a beira-mar. O Loirinho foi outro que a vida engoliu. Soube que hoje é caminhoneiro. Filho de um funcionário da antiga RFFSA (A Rede Ferroviária), vivia a traquinar na Estação de Trem que ficava defronte a minha casa na cidade. Logo formávamos uma dupla extremamente eficaz quando descíamos ao mar. Dois meninos. Dois espinheis. E o maior morticínio de bagres jamais vistos naquelas águas.
Bem cedinho estávamos a pastorar os grandes tresmalhos da pesca de arrasto. Maré baixa, os homens do Mestre Ás de Ouros ou do Mestre Waldeci puxavam suas redes... Infinda paciência daqueles homens enormes e gentis. “Cuidado com isso .... Cuidado com aquilo, meu santo...” diziam aqueles bravos para nós que insistíamos em puxar a corda também... Tínhamos interesse na coisa. Era das sobras dos grandes tresmalhos que tirávamos nossas iscas. Maré alta, sol pleno, as redes eram recolhidas... Era a hora dos nossos “espilheis” entrarem em ação. Rodávamos as linhas que zuniam sobre nossas cabeças antes de serem arremessadas sobre as ondas... De pé sobre uma rocha, ficávamos ali, carretel nas mãos (molinete era pra os ricos), todos os sentidos voltados para o sinal que viria pelo fio... Um solavanco. Uma puxada brusca em resposta. Uma recolhida rápida da linha... E um bagre a menos no mundo....


III

Por essas e por outras melhor que não se diga que “foi à praia” quando das férias na capital. Dali nunca se saberá o que é o mar. Dali, é impossível compreendê-lo, abarcá-lo. E como se poderia? A cidade grande litorânea não tem beira-mar. Tem orla. Orla marítima, dizem eles. “Points”, na verdade. Enclaves pasteurizados de badalação insípida, onde desfilam vaidades e pífias intenções. Onde se espremem corpos sarados na estreita faixa entre a ultima fileira de mesas das barracas de bebidas e as primeiras espumas de um falso mar. Falso sim pois o verdadeiro se esconde “lá fora”, como se diz na linguagem das jangadas e “baiteiras”. Ele só se faz presente próximo á areia nas pequenas vilas de pescadores que ainda existem aqui e acolá, ou nas praias desertas em que busco hoje, sequioso, minha paz. Nestas paragens, Oceano se digna a chegar perto da gente. Poucos são os que o conhecem então, pisando sobre areia.
Aprendi a amá-lo e a respeitá-lo pelas histórias de Seu Antonio Coco. Reconheço sua linguagem, ainda hoje, levado que fui bem cedo a ler seus trejeitos pela mão calejada, firme e não menos delicada dos puxadores potiguares de tresmalhos. Mestre Ás de Ouros, Mestre Waldeci e Genaro me ensinaram o que diz o vai-e-vem das ondas. Meu olho foi condicionado a distinguir, lá longe, entre os pequenos pontos brancos da espuma das águas que se levantam ao largo, o branco mais turvo de uma vela. A depender da hora, ela vai ou vem, a jangada. Se de madrugada-manhã, tá indo, aproveitando o vento. Se de tardezinha, vem aportando, na obediência das brisas. Não me tem mistérios prender e iscar anzóis. Não me enoja arrancar o esporão de um bagre com os dentes ou mastigar um camarão cru. Furada de bagre no pé? Se for muito fundo o buraco, passa a dor se você arrancar o olho do bicho e coloca-lo sobre a ferida. Golfinhos são toninhas... Elas são amigas da gente. Não falava Seu Antonio do pescador que, salvo de um naufrágio por uma toninha, cortou um pedaço da própria perna e deu ao bicho como tributo??? Cação tem cheiro de melancia... Quando se faz forte é que tem um por perto. Taióba se colhe no inverno. Uma lata de querosene Jacaré cheia de “buzos”, dá um prato de sua carne. Siri se pega com “jereré” e uma cabeça de galinha como isca... Peixes pequenos são “caícos”...
São coisas da praia que nunca me saíram do juízo. O mar nunca saiu de mim, creio eu. O mar, seus homens e mulheres, seus seres reais ou míticos... Ainda estou lá, menino, sobre aquela pedra a rodar o “espinhel” sobre a cabeça... Sou eu que rasgo o vento na ponta da linha em busca das ondas e dos peixes. Serei eu no futuro, Seu Antonio Coco, deitado numa rede sob um alpendre a contar histórias do mar, seus mistérios e manhas, à Maya Jordana, minha filha.


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