sexta-feira, agosto 15, 2008

Reproduzo: "João Gilberto representa os 50 anos de uma revolução ainda em movimento"


Que texto preciso, que visão clara da dita Música Popular Brasileira (que de popular não tem merda nenhuma...)

p/ Ronaldo Evangelista
Cauby Peixoto, Maysa, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Anísio Silva, Ângela Maria e... João Gilberto. A lista dos cantores de maior sucesso no Brasil em 1958 só prova: algo estava acontecendo. Ou melhor, alguém.

João Gilberto, então um "baiano bossa-nova de 27 anos" (como definiu Tom Jobim na contracapa do álbum "Chega de Saudade"), morava no Rio de Janeiro e tentava a carreira de cantor, alguns anos depois de haver desistido da vida de crooner em já ultrapassados conjuntos vocais -formação típica da época. Quando conseguiu a tão sonhada chance de gravar um compacto com suas recentes inovações musicais e, na seqüência, seu primeiro elepê, não deixou barato: em dois minutos cravados de harmonia, melodia, poesia e sutilezas interpretativas, criou toda uma revolução. Era "Chega de Saudade", claro.

Ali, naquele momento, entre aquelas músicas, a canção e sua interpretação tinham a força de um manifesto: um balanço completamente novo, um senso de humor inédito, diminutivos e um amor que se queria feliz. Virtuoso em seu minimalismo, confiante em sua visão, inovador em suas referências, João Gilberto exigiu dois microfones (um para sua voz, outro para seu violão), enlouqueceu técnicos e músicos com seu perfeccionismo, enxugou tudo que era excesso na música brasileira e apresentou novíssimas idéias para quem quisesse ouvir.

Ao interpretar canções dos jovens mais criativos de sua época e recuperar e recontextualizar clássicos esquecidos de seu tempo de menino,
João embutiu suavidade em um universo musical dominado por peitos estufados, vozeirões potentes, letras claustrofóbicas e expressões dramáticas. Some-se a isso as grandes liberdades harmônicas propostas por Tom Jobim e todo um novo mundo de imagens poéticas leves e bem humoradas de Vinícius de Moraes e voilà, tire do forno reviravoltas musicais, culturais, estéticas, comportamentais, sociais.

Quase imediatamente aquele jeito de cantar, aquela batida de violão, aquela modernidade toda virou febre entre os mais eruditos e bem vividos garotos da zona sul carioca. Foi o estopim necessário para a popularização do estilo musical como mais que um som e até mais que um movimento: a bossa nova se tornava um estado de espírito. Cortes de cabelo, filmes, presidentes, capitais, geladeiras eram bossa nova.

Mas, a história nos prova, em pouco tempo aquela bossa ficou pequena para João. O que ele faz --e sempre fez-- é samba: moderno, minimalista, subvertido e transubstanciado, mas samba. Tomando pra si o melhor de tudo que veio antes e acrescentando suas próprias idéias vanguardistas, João criou uma música que combinava a elegância de Ary Barroso, a emoção de Orlando Silva, a malemolência de Dorival Caymmi, a modernidade de Dick Farney, o tom jocoso de Assis Valente e Geraldo Pereira.

Se muitos ficaram chocados ao ouvir pela primeira vez aquele som suave e delicado em uma época de grandiloqüências, outros tantos foram fisgados imediatamente: Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Roberto e Erasmo Carlos, Chico Buarque, Tom Zé, Jorge Ben, Tim Maia e tantos outros tiveram momentos de epifania ao ouvir aquela voz no rádio. A ponto de se sentirem livres para eles próprios criarem suas músicas, sempre admitindo João como o grande inspiração de todos.

Apenas cinco anos depois, em 1963, os maiores sucessos do ano eram: Jorge Ben, Trio Esperança, Roberto Carlos, Jair Rodrigues, Os Cariocas, Orlandivo. O futuro já havia chegado e não planejava ir embora tão cedo. Pouco depois, toda aquela influência ainda se espalharia mundo afora e a bossa nova se tornaria o produto brasileiro exportado mais famoso desde as frutas na cabeça de Carmen Miranda. Cada um pegava a semente, regava e plantava a sua própria bossa nova. Enquanto João, ele, diminuía o ritmo de produção e aumentava a excelência de cada passo tomado, cada show feito, cada música cantada, cada disco gravado.

Já na década de 70, escreveu Nelson Motta em uma crônica: "Quanto mais ouço João Gilberto mais encontro motivos para novas reflexões e emoções em torno desse artista único na música brasileira. Ao contrário do que se poderia supor, João não está se repetindo nem sua criatividade cansada - o que seria até compreensível, tal a força revolucionária das contribuições que já deu aos rumos da música. Está em plena forma, levando a extremos sua mitológica capacidade de invenção musical, com uma precisão absoluta presidindo todas as suas intenções e transformando-as em realizações impecáveis."

Hoje, passados 50 anos do primeiro impacto do terremoto que tirou tudo do lugar que foi "Chega de Saudade", João Gilberto continua ainda em plena forma: cria, cria, cria e nunca se repete, não importa quantas vezes cante a mesma música.

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