quinta-feira, maio 20, 2010

Irresponsabilidade permitida...e admirada

Como já se sabe, passo três horas por dia em cima de um par de tênis exercendo minha cota diária de power walking. O que me mantém na pista, além do bem-estar proporcionado pela serotonina, são as novidades que carrego no player de mp3, em constante diálogo com os tímpanos via headfones. Sempre, mas sempre mesmo, tem um disco por ouvir, algum show de humor (o áudio roubado do vídeo... as pessoas estranham quando passo me torcendo de rir entre uma passada e outra) ou mesmo ... livros. Isso mesmo. O audiobook (o livro narrado e formatado em arquivo de áudio) transforma a pista em uma extensão de minha sala de leitura e me proporciona distração suficiente para matar as horas no ritmo dos passos.

Desde o início da semana me delicio com “Vale Tudo – O Som e a Fúria de Tim Maia”, belíssimo trabalho do Nelson Motta, que, na versão acústica da obra, faz a leitura. Como se percebe é o relato biográfico do gordo de voz poderosa, Sebastião Rodrigues Maia, o Tim. O texto, em sua forma e conteúdo, é um primor. E sobressaltos não faltam quando o assunto é o Tim Maia. Responsável pela disseminação de um estilo pouquíssimo (ou mesmo, não) explorado na cena artística nacional de fins de 60 e meados de 70, o artista abre veredas sonoras que serão trilhadas e ampliadas pelas gerações posteriores. Era o nosso homem do Soul e da Black Music que tinham na Motown, lá na terra do Tio Sam, seu santuário.

Quem mergulha na obra se percebe enredado, cúmplice remoto, na refrega do artista por um lugar no seleto nicho do estrelato. Sebastião, antes de Tim, assiste ressentido seus amigos de infância Roberto e Erasmo Carlos, Jorge Ben e Almir atingir patamares nunca sonhados nos campinhos de pelada da Tijuca. E o pior: muitos deles encontram orientação musical no gordinho esquentado que fica “sentado à beira do caminho” enquanto a caravana da fama passa fulgurante. Pobre, negro e gordo, o perfil não ajudava. Pra piorar, era dono de um gênio terrível responsável por passagens trágicas em sua vida pessoal e artística. No fim, tudo dá certo. Já como Tim Maia, Sebastião ocupa em definitivo seu lugar na tela sonora nacional, com sua voz poderosa, seu talento como compositor e arranjador, tudo sem a mínima noção de Teoria Musical.

Mas tinha uma coisa que me incomodou e me incomoda, mesmo passada a audição da obra. Um traço que reputo bem brasileiro. Que o Tim Maia sempre foi controverso, é fato inequívoco. Uso largo e farto de drogas, agressões verbais e físicas, dívidas não pagas, compromissos pessoais e profissionais não cumpridos, prisões aqui e lá fora, são lugares comuns na trajetória do moço. E o Nelson conta tudo escancaradamente e de uma forma bem leve, quase faceira. No começo é divertido. As presepadas do gordo Sebastião pinta de cores extravagantes um ensaio do que viria a ser uma carreira bem movimentada. Mas a coisa vai esquentando. Contas não pagas em hotéis, vandalismo, alugueis acumulados e esquecidos além de agressões recorrentes a sua companheira, Janete de Paula, que aos vinte e quatro anos dá entrada no hospital Lourenço Jorge (Barra da Tijuca, Rio de Janeiro) com contusões, escoriações e hematomas vítima de uma surra proporcionada por um enciumado Tim, lá em meados dos anos 70.

Ora, eu já vinha ficando puto desde algumas páginas e capítulos atrás. Em que pese (ops) a envergadura artística do Tim, eu começava a ficar irritado diante do quadro turbulento desenhado pelo próprio. E o pior é que o autor da obra, o Nelson Motta, mantinha um tom ameno e divertido ao narrar as desandadas. Irritação besta de minha parte. Isso é a cara do Brasil.

Aqui, na terra de Cabral e Caminha, amamos a contravenção e admiramos contraventores. E se calhar for o dito figura pública, um artista, tudo então se justifica. Como o Tim era extremamente talentoso e os danos por ele causados se assinalam alhures e a outros, então podemos achar engraçadinho o filho da puta meter a mão na cara de uma mulher, deixar de pagar contas e desrespeitar o público não dando as caras no palco. Quanto ao consumo e a apologia ao uso de drogas, isso então é cult. Se a postura ficasse enganchada nas rebarbas dos anos 60 poderíamos situar a coisa no quadro histórico-cultural do momento. O que não encontra justificativa ética, pelo menos tem o atenuante do contexto. Mas não é o caso. Esse é o perfil do brasileiro, sempre simpático às falcatruas, desde que não o atinja enquanto individuo.

O país nasce sob o estigma da condição de Colônia de Exploração. O “portuga” que aqui chegava mal botava os pés na praia e já saía por aí em busca de grana de forma que pudesse voltar rapidinho à “terrinha”, às suas tabernas e cachopas. O Estado seria a institucionalização da sanha por lucros, mordendo fatia gorda de tudo o que era espremido deste lado do Atlântico. Enganar, driblar, subtrair do governo era o esporte nacional. E não podia deixar de ser assim já que a máquina colonial estava cagando-e-andando para a nascente sociedade verde-e-amarela. Se dar bem em cima das instituições, manter-se a frente do concorrente na busca pela riqueza fácil era a tônica. Infelizmente esse proceder, essa visão distorcida das coisas, cultuamos até hoje.

Isso permite que o Nelson Motta misture alhos-e-bugalhos. O talento do artista atenua, quase justifica, seu comportamento insano e danoso. Ora, bolas. Uma coisa nada tem a ver com a outra. O fato de admirar o Tim Maia (eu o ouço agora mesmo, enquanto escrevo, sempre encantado com suas firulas musicais) não faz com que eu o veja de forma angelical, convidando-o a jantar em minha casa. Se a Janete de Paula, que levou sopapos do Tim até umas horas, fosse irmã do Nelson Mota (ou sua mãe), gostaria de ver com ele iria descrever a cena soturna em seu livro. Será que o faria emprestando aquela atmosfera divertida que salta dos seus escritos? Não sei. Parece tão natural a coisa na leitura do Nelson... Tenho certeza que os lesados e agredidos por Tim Maia, esse inegavelmente fabuloso artista, não encontram consolo ouvindo “Azul da Cor do Mar” ou “A Festa de Santos Reis”.


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